Não, não é apenas de futebol que eu gosto: é da forma como ele sempre se me apresentou (bem sei que isto vos vai parecer um chavão, mas eu já explico) como uma das mais belas, transparentes e transversais metáforas para a vida: de como nele de concentram a alegria e a tristeza, a euforia e a angústia, a vida e a morte, a coragem e a cobardia e a tenacidade e a negligência e a generosidade e a maledicência – e de como essa metáfora, se bem manipulada, pode tornar-se acessível a tanta gente. O Sporting dos últimos cinco anos cegou-me a essa dimensão. Afundado numa angústia progressiva, eu, como outros, troquei a metáfora pela metonímia – e, entretanto, atarantado com as proporções, perdi o Norte ao todo e à parte, ao continente e ao conteúdo, ao copo que se bebe e ao vinho que se segura com a mão.
Esta semana, estou longe de Portugal. Não tão longe que não me tenham chegado já, provavelmente, os ecos do jogo da Taça da Liga, os relatos das suas glórias e dos seus fracassos, as provocações e até as palmadinhas nas costas. Mas longe, apesar de tudo. Longe dos rostos. Longe do email. Longe do FaceBook e do Twitter e do Orkut. Perto do telefone, mas com ele quase sempre desligado. E, portanto, fora do alcance das tropelias de Carlos Xistra, de Lucílio Baptista e de Olegário Benquerença. Inacessível aos desmandos da Comissão Disciplinar da Liga, das televisões enamoradas de Jorge Jesus e de todos aqueles que, inadvertidamente focados no imperativo do combate ao défice, insistem nas vantagens de uma vitória do Benfica para a recuperação da economia nacional. Surdo às palavras de José Eduardo Bettencourt, cego às travessuras de João Moutinho e companhia, mudo perante o resultado e as incidências e o rescaldo e tudo o mais que tenha a ver com o derby.
Portanto, não: eu não tenho nada a dizer sobre o Sporting-Benfica, que apenas verei gravado, ao regressar a Lisboa. E, no entanto, trago agenda. Pessoa que admiro considerou há dias o meu “Todos Nascemos Benfiquistas”, em que reuni algumas das crónicas de futebol que durante anos publiquei na NS’, um livro “sobre a vida toda”, mais do que sobre futebol – e eu gostava, de alguma maneira, de reencontrar esse olhar. Sei onde o perdi: perdi-o lamentando Paulo Bento e deplorando Soares Franco; perdi-o abismando-me com os colossais erros cometidos em todas as áreas da gestão do meu clube e empenhando-me em chamar publicamente a atenção para eles; perdi-o deixando-me obcecar com um regresso às vitórias e esquecendo-me do prazer de que antes me inundava uma boa derrota. Trago livros, naturalmente: livros de ficção, livros de crónicas, livros de poemas. Não sei se a solução está nos livros ou está no mar. Mas, por estes dias, tenho os dois ao meu dispor – e foi algures entre os dois que sempre reencontrei as paixões perdidas.
O futebol. Mas quem é José Eduardo Bettencourt e quem é Carlos Carvalhal e quem é Rui Patrício – quem são estes funcionários de trazer por casa, afinal, para destruir um amor de uma vida inteira?
CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo"). Jornal de Notícias, 12 de Fevereiro de 2010