Tenho no meu FaceBook um amigo especial. Não é um amigo, na verdade: é um grupo. Chama-se “Eu Vou-me Rir Tanto Se o Glorioso Benfica Deste Ano Não Ganhar Nada”, foi fundado por uma série de antibenfiquistas primários (que são os melhores) – e, naturalmente, aderi a ele assim que me chegou o convite. Não é segredo para ninguém: o meu futebol começa na rivalidade entre o Sporting e o Benfica, dá a volta ao mundo e termina nela outra vez. Sou de uma terra que oscila entre o verde e o vermelho e sou de um tempo em que subsistiam ainda os gloriosos ecos da gloriosa época do glorioso Eusébio, embora muito depressa o FC Porto tivesse começado a ganhar tudo. Foram muitos anos a levar pancada, no fundo – uma adolescência inteira de fracasso, dor e solidão. Mesmo hoje, o meu futebol é esse, haja ou não sociedades anónimas desportivas, haja ou não assembleias gerais de accionistas, haja ou não comunicações à CMVM. E, efectivamente, desde Maio ou Junho que o sentimento que me vinha tomando era: “Eu vou-me rir tanto se o glorioso Benfica deste ano não ganhar nada…”
Pois esse sentimento abandonou-me. Esse desejo de vingança, essa ansiedade de testemunhar o desastre, essa sede de ser eu próprio a accionar o alçapão – tudo isso me abandonou já. Uma espécie de hipnose colectiva tomou conta deste país. Há como que uma felicidade no ar: vizinhos desavindos reconciliam-se, casais decidem começar a fazer filhos, a própria economia parece preparar-se para respirar de novo. E eu fico preocupado. Às vezes, e estando na companhia de benfiquistas eufóricos, ainda tento pôr alguma água na fervura: “Não subam esse coqueiro todo, amigos. Olhem que é alto.” Dali a pouco, porém, eu próprio sou tomado por uma imensa paz: uma alegria quase juvenil, uma excitação fervilhante que é ainda, apesar de tudo, paz e harmonia. Está Freud às voltas dentro de mim, claro. Também eu tenho algo de benfiquista (o bem e o mal, já se sabe, convivem no homem). E eu próprio me vejo de repente a subir o coqueiro, a reconciliar-me com o meu senhorio, louco por fazer filhos, desvairado por pedir mais um empréstimo ao banco e comprar uma casa nova, um carro de luxo, um cruzeiro à volta do mundo.
De forma que não me mobiliza por aí além este pedido de Pinto da Costa para que o secretário de Estado do Desporto interceda junto das autoridades judiciais no sentido da criação de uma Operação Apito Encarnado. Na verdade, estou convencido de que toda esta trapalhada é involuntária. Tanto quanto percebo, os próprios homens do assobio foram tomados por esse estranho vírus da felicidade, para o qual não parece haver vacina. E assim vão eles connosco, e nós com eles: todos subindo esse coqueiro gigantesco, na ignorância de que lá em cima, apesar de tudo, sopra uma razoável brisa. Pelo que, para bem de todos nós, o melhor é mesmo que o Benfica efectivamente ganhe algo que se veja este ano. Porque de uma coisa eu tenho a certeza: ninguém se vai “rir tanto” se ele não ganhar. Este país ficará, de facto, irrespirável no dia em que a benficagem sair à rua celebrando a sua vitória. Mas é melhor não cutucar a serpente do mal. Antes um país irrespirável do que a malta toda apontando cacos de vidro aos pulsos, a ver se apanha a cauda do cometa. Então, sim, é que esta economia nunca mais recuperava.
CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo"). Jornal de Notícias, 15 de Janeiro de 2010