Isto está tudo trocado. Quem percorre os jornais, as televisões e as rádios, lendo e ouvindo as declarações épicas de José Eduardo Bettencourt e dos seus próximos, fica com a sensação de que o presidente do Sporting conseguiu uma vitória enorme ao fazer aprovar, finalmente, o seu (seu e não só) plano para a reestruturação financeira do clube. Peço desculpa: não foi isso que aconteceu. O que José Eduardo Bettencourt recebeu não foi uma vitória: foi um ultimato – e é tão importante que ele saiba o que recebeu como que os sócios do Sporting saibam a verdadeira natureza daquilo que lhe deram.
O dito plano de reestruturação financeira, já se sabia, era tão importante para os sportinguistas como o novo Tratado Europeu para os irlandeses. Basicamente, ninguém queria saber da coisa concreta – apenas queria usá-la como statement para outra coisa qualquer. Ora, os sócios do Sporting (que, tal como eu, conhecem muito pouco sobre “Valores Mobiliários Obrigatoriamente Convertíveis”) tinham esta ferramenta presente. Enquanto o plano não fosse aprovado, a dinastia que há quinze anos nos dirige não tinha ainda disposto de todos os meios que exigia – e, portanto, não só ainda dispunha ela própria de margem de manobra, como dispunham os sportinguistas de uma escapatória mental para não se sentirem tão mal na sua própria pele.
Naturalmente, a dinastia não resistiu: tal como o Governo irlandês fez com o tratado, decidiu propor o plano tantas vezes quantas os sócios levassem a aprová-lo. A aprovação maciça na assembleia geral de terça-feira (embora não tão maciça como na eleição de Bettencourt, é preciso não esquecer) vem de encontro a essa pretensão. Por outro lado, cria um constrangimento suplementar. “Um” constrangimento, não: “o” constrangimento. “O derradeiro” constrangimento, no fundo. Porque, a partir daqui, Bettencourt simplesmente já não se pode queixar de nada. E, se não conseguir fazer do Sporting campeão com todos os meios que exigia, então não devia sequer ter-se candidatado – muito menos fazer aos consócios as promessas que fez durante a campanha eleitoral.
Pois estão aí os mui desejados 34 milhões de euros de encaixe. Tirando uma eventual passagem do estádio para a SAD (está-se mesmo a ver que será a exigência seguinte, não está?) são provavelmente os últimos 34 milhões que conseguiremos em sede de engenharia financeira. Por isso, quando eu releio aquela declaração do presidente a “O Jogo”, dizendo que, depois disto tudo, apenas será possível aumentar “um cheirinho” o investimento no futebol, desvio os olhos e faço de conta que me distraí com a televisão. Era simpático, ao menos, que houvesse um certo decoro depois deste nosso último gesto de boa vontade.
CRÓNICA DE FUTEBOL ("Futebol: Mesmo"). Jornal de Notícias, 16 de Outubro de 2009